quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Empoeirado

Deixou-se em casa, bem trancado em suas tetra-chaves. Aprendeu a olhar o outro, esse outro cheio de sujeiras tão profundas e tão visíveis ao mesmo tempo. Para conseguir, precisava olhar de longe, mesmo sabendo que a sujeira, a poeira, entranha em todos os cantos. Ninguém está imune, apesar dos dedos em riste, apontando sempre para o outro. É muita poeira pra todos os lados.
Resolveu levar consigo um espanador. Em vão, ele só mudava a poeira de lugar. Daí experimentou uma toalha velha que tinha em casa: limpou, mas deixou vestígios. Poeira maldita. Viu na TV uma "toalha seca-limpa-dá brilho e ainda tem perfume". Acreditou, comprou, entregaram em casa. Usou. É, limpou, e até que deixou um cheirinho bom. Não durou.
Mesmo bem trancado, ganhou poeira. E sabia que não havia como se livrar dela, até que lhe ocorreu a melhor idéia de todas: comprou um antialérgico e conviveu harmonicamente com a sua e com todas as outras poeiras.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Do melhor de 2011

Dormir na própria cama, silêncio, fim de semana sem trabalho. Sair do plantão de manhã cedinho e ver o céu. Felicidade de paciente tendo alta. Abraços, muitos abraços. As pessoas incríveis. Os amigos que ficam. Fernando de Noronha. O fundo do mar. Nordeste. Namorar na rede. Passeio de buggy com cabelos ao vento. Sofá só pra mim. Café da manhã com a família. A família. Fazer a diferença. A coragem, o medo, tudo junto. Todo dia. De novo, no ano novo.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Diálise emocional

Lágrimas: de dor, de tristeza, de raiva.
Mais raras as de gratidão.
Já vi lágrimas de emoção também. Lágrimas públicas, lágrimas tímidas e até as que, mesmo se reparasse bem, não as via. Mas elas estavam lá, obstruídas por coisas não ditas que as pessoas carregam e que não permitem.
Lágrimas não permitidas, já vi também. Proibidas pela censura do outro que não sabe da própria tristeza. Ou sabe, mas não quer saber.
Uma vez vi uma lágrima bonita que acabara de ganhar vida ante a beleza de fora. Beleza essa que só reflete a de dentro de quem consegue ver fora.

Uma vez me disseram: se você ri em público, porque não pode chorar também?
Foi assim que eu achei que lágrimas são um assunto bonito.

(O título é emprestado da fala de Joyce Menezes, querida.)







sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Em letras

Leia-me. Mas leia-me inteira, desde o rascunho manuscrito e por muito borrado pelas correções. Leia-me imperfeita, com erros. Leia-me com as passagens bonitas, as melancólicas, as depressivas, as exaustivas, as intermináveis, as aventureiras, as divertidas. Leia-me. Leia-me todos os dias porque igual eu nunca serei. Leia-me dormindo, nessas horas o devaneio é permitido. Leia-me sonhando e construa quem você quiser. Leia-me quando acordado, o real é muito melhor. Leia-me andando na rua. Tropece por isso, mas continue lendo e descobrindo. Leia-me no trabalho, seu chefe detestará, mas isso pouco importa. Desfrute página por página.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Diálogos inúteis - parte III

- Eu acho que as pessoas deviam colocar uma pedra no passado.

- Eu já acho que elas deviam era jogar uma pedra na cabeça desse tal "passado".

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Dos alarmes da vida

A sirene lhe abriu os olhos, enquanto escancarava os ouvidos. Soava como um alarme ininterrupto de "pare, é uma emergência". O barulho ensurdecedor ia tomando suas idéias, paralisando suas ações quando, num ímpeto, largou todos os seus papéis, todas as suas funções e disse: "dá licença, vou ser feliz".
Ninguém entendeu nada.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Tá bom assim?

Tem gente que passa uma vida inteira satisfeito com o mais-ou-menos.
Porque o mais-ou-menos pode ser o melhor que tá tendo. Porque não existe nada melhor que isso, ora!
E assim, ficamos sempre mais-ou-menos satisfeitos, mais-ou-menos felizes, mais-ou-menos achando que a vida é mais-ou-menos assim: eu tenho que tolerar seu mais-ou-menos porque eu também devo ser lá, hum, mais-ou-menos.

Eu achava que o que eu queria era pouco e simples, mas com esses mais-ou-menos todos descobri que o quero é demais: eu não quero o mais-ou-menos. Mesmo sendo, digamos, mais-ou-menos lúcida.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Borboletas

- Quero criar borboletas.

Por suas cores que, manhosamente, se emaranham nos cabelos das moças. Pelo balé bonito que fazem com sua leveza, tingindo o cinza do asfalto e fazendo sorrir por onde passam. Porque eu acho que são poucos jardins e são poucas as borboletas, e o mundo precisa, sim, de mais borboletas.

É por isso que o menino, quando crescer, quer criar borboletas.


(Para Daiana, que tem um coração tão bonito quanto o do menino-anônimo, criador de borboletas).

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Metalinguístico

Naquela pontinha do mundo - que era quase o fim do mundo - alguém gostava de poesia.
A palavra fazia companhia e derramava beleza sobre os dias frios e solitários.
"Quem escreve? Acho bonito que só." - pensava.

Lá do outro lado, num lugar muito caloroso e cheio de sentido, quem escrevia se esmerava em construir coisas bonitas de ler, pensando: "Pode ser. Palavra é coisa difícil, mas a gente vai juntando e uma hora sai o que pode fazer a alma de alguém sorrir. Porque escrever para o coração ainda é fácil, igual lápis sobre papel. Agora escrever para a alma é que nem dedo no ar: ninguém vê o que sai, mas ver, não precisa, precisa sentir."

E o leitor-da-ponta-do-mundo agradecia, sentindo quentinha a alma.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Diálogos inúteis - parte II

- Não podemos ficar juntos.

- Porque? Somos irmãos??

- (Silêncio)...

sábado, 2 de abril de 2011

Ofuscante

Vestida de estrelas, colocou brisa no cabelo.
Encheu os olhos de sol.
Subiu num salto de pedrinhas multicores.
Ofuscou qualquer discernimento e desagregou todo pedaço, escondido que fosse, de escuridão.
Seguiu, cegou e sorriu quando lhe perguntaram de onde vinha tanto brilho.

quinta-feira, 24 de março de 2011

[Sem título]

De repente, um sono profundo. Cada vez mais.
Para onde escorregava sua alma? Descansava?
Não. Estava bem ali, esperando por um sopro que lhe tirasse do limbo (porque qualquer limbo não é bom).
Esperava que o corpo correspondesse ao desejo da alma.
Esperava que o ar lhe enchesse os pulmões.
Esperava sentir de novo o toque.
Esperava o correr das horas.
Esperava.

terça-feira, 1 de março de 2011

Se deixa levar...

...porque "talvez atrapalha".

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Em primeira pessoa

Era uma vez uma moça que não gostava de escrever em primeira pessoa.
Foi quando, muito apaixonada por ela mesma, virou uma tremenda egoísta e achou que podia ser matéria de si própria.
Ora, quanta pretensão! Mas não se importava, queria mesmo era se ver traduzida em palavras, das quais tanto gostava.
E assim, de palavra em palavra, se construía como protagonista de uma história cheia de personagens que traziam beleza e leveza ao seu caminho. Com eles, ela escolheu seguir junto, na alegria e na tristeza (para ela essa frase fazia mais sentidos nas amizades do que nos casamentos).
Se fazia viva, cheia de sentimento, agora, sempre em primeira pessoa.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Da série "diálogos inúteis - parte I"

- Tem um negócio entalado na minha garganta.

- Você comeu peixe hoje? Engasgou com bala Soft?

- Não, engoli foi um sapo mesmo.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Tudo azul

Não, não chove. Faz muito sol e o céu é azul.
A música me alimenta, o trabalho me faz feliz, as pessoas melhoram meus dias.
Tudo acontece em ritmo das valsinhas dos quinze anos, fluindo levemente e simplesmente acontecendo de maneira bonita. Sim, eu acho a vida bonita, e a minha mais ainda. Sou grata.

E quando eu penso que me falta algo, lembro logo daquela música do U2, "Beautiful day", que, em bom português, diz que o que a gente não tem é porque não precisa agora.

Não falta nada. É só uma questão de tempo. E de necessidade.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Sossego

Hoje eu queria só palavras bonitas.
Mais nada não.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Sonho de dois

"Tinham dormido com as cabeças encostadas e aí, nessa premência física, na coincidência quase total das atitudes, das posições, da respiração, do mesmo quarto, do mesmo travesseiro, da mesma escuridão, do mesmo tique-taque, dos mesmos estímulos da rua e da cidade, das mesmas radiações magnéticas, da mesma marca de café, da mesma conjunção estelar, da mesma noite para os dois, aí estreitamente abraçados, tinham sonhado sonhos diferentes, tinham vivido aventuras diferentes, um sorriso enquanto a outra fugia aterrorizada, um voltara a prestar exame de álgebra, enquanto a outra chegara a uma cidade de pedras brancas.(...) Como era possível que a companhia diurna desembocasse inevitavelmente naquele divórcio, naquela solidão inadmissível do sonhador?" (Julio Cortázar, em O jogo da amarelinha)

Alguém para sonhar igual. Eu não desisto mesmo.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A cidade

Gostava de ver a cidade de cima. As luzes iam ficando mais próximas, na mesma medida em que seu coração ia ficando mais aquecido (coração de moça nascida no Vale do Aço).
De aço era o coração, que amolecia ao sentir amor próximo, mas a alma era leve. Leve ficava ainda mais no balanço da aeronave, que embalava sonhos, saudades, desejos.
Assim, já bem baixinho e coração galopante, aterrissava rumo ao seu destino, na cidade em que as luzes brilhavam apenas do lado de fora.